quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Lei em SC tenta impor novas regras e critérios às seguradoras

Em data recente, foi aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina, a Lei nº 15.171/2010 e, padecendo da eiva de inconstitucionalidade, recebeu o veto do Governador do Estado, este que, nada obstante, foi derrubado pela mesma Assembleia Legislativa, restando, agora, impugnação junto ao Poder Judiciário.
Cumpre de início esclarecer que projetos de lei de idêntico teor foram, em clones, apresentados em Assembleias Legislativas de outros estados, como, por exemplo, nos de São Paulo e Espírito Santo, sem notícias, no entanto, de que vetos produzidos tenham sido derrubados.
Cuida-se de lei estadual que, dispondo sobre operação e política de seguro de automóveis, pretende, talvez por inconsciente anomia de justificação, impor às sociedades seguradoras no estado de Santa Catarina regras e critérios que afetam a liquidação de sinistros de veículos avariados e cobertos por apólices de seguro e, por conseguinte, as operações e contratos das sociedades seguradoras, mesmo a despeito de suas condições e operações serem da competência e aprovação da Superintendência de Seguros Privados – Susep e regidas por atos normativos federais decorrentes do comando legal traçado pelo Decreto-Lei 73/66, estatuto legal federal recepcionado pelo art. 192 da Constituição Federal em 1988, com status de Lei Complementar. Dispõe ainda a referida lei estadual que as sociedades seguradoras que não observarem tais regras e critérios estarão sujeitas não só às penas pecuniárias ali estabelecidas em UFIRs como à pena capital de cassação, mesmo também a despeito de o processo sancionador das sociedades seguradoras ser da competência exclusiva da Susep, assim como é dessa autarquia federal a competência para autorizar e desautorizar as seguradoras a operar em qualquer região do País, inclusive no estado de Santa Catarina.
A lei estadual em causa, permita-nos vênia, na medida em que se arvora, no âmbito do estado de Santa Catarina, ou qualquer outro que fosse, em legislar sobre matéria da competência privativa da esfera federal, se desconvizinha de preceitos e princípios fundamentais de ordem pública e peca, já de início, pela mácula da ilegalidade e da inconstitucionalidade, afrontando, dessarte, a Constituição Federal e respectiva legislação federal por ela recepcionada. Tal como posto, o projeto invade e usurpa, sem cerimônia, a área legislatória federal, esbulhando a competência da União para legislar sobre matéria de seguro (CF art. 22, VII e DL 73/66, art. 7º), chegando ao ponto de estabelecer, indevidamente, multas pecuniárias às sociedades seguradoras e, com desmedida extravagância, até mesmo a pena máxima de cassação, como dito.
Com efeito, reza o art. 22, inciso VII, da CF, in literis, que
“Compete privativamente à União legislar sobre:
...........
VII – política de crédito, câmbio, seguros e transferência de valores;
..........”
Arremata, cum granun salis, o art. 7º do também citado Decreto-Lei 73/66, não deixando margem a dúvidas:
“Compete privativamente ao Governo Federal formular a política de seguros privados, legislar sobre suas normas gerais e fiscalizar as operações no mercado nacional.”
Ditos dispositivos, ao conferirem competência privativa à União para legislar sobre a matéria, se harmonizam plenamente com os princípios constitucionais da razoabilidade e proporcionalidade, que estariam sendo igualmente menoscabados pela lei estadual em comento, considerando ademais que as empresas que lidam com seguro, a exemplo das instituições financeiras, administram valores pertencentes ao público, ou garantidores do patrimônio do público. Daí ser absolutamente necessário que a regulamentação da matéria seja uniforme em termos nacionais, motivo pelo qual legislar sobre ela é da competência privativa da União. Por isso o exercício parcial ou total, direto ou indireto, do poder dos estados de legislar sobre as operações de seguro afetaria efetivamente a regulamentação da matéria. Com efeito, a imposição de normas estaduais, gerais ou específicas, sobre seguro, ou qualquer exação que afete a operação das sociedades seguradoras, inviabilizaria a finalidade do art. 22, VII, da CF, como também a do art. 7º do DL 73/66, ambos citados, que refutam, insuperavelmente, qualquer possibilidade de haver sobreposição de leis, muito menos de leis estaduais com federais, não sendo, portanto, da competência privativa, supletiva ou concorrente dos estados legislarem sobre os assuntos enumerados como de competência privativa da União, dentre eles os que se referem a seguro.
Tanto é assim que o parágrafo único do mencionado art. 22 da Carta da República estabelece, textualmente, que só Lei Complementar federal poderá autorizar os estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo, dentre elas, ressalte-se, a de seguro.
É incontestável que o sistema unificado de medidas, no que concerne às atividades, contratos e operações das seguradoras e instituições financeiras, é conveniente para consolidar a unidade nacional, daí a competência privativa da União.
Vale ainda ressaltar que o DL 73/66, recebido pela CF de 88 com status de lei complementar federal, logo no pórtico de seu art. 1º estabelece que "todas as operações de seguros privados realizadas no País ficarão subordinadas às disposições do presente Decreto-Lei" e, no seu art. 2º, é igualmente categórico em determinar que o controle do Estado se exercerá pelos órgãos instituídos no mesmo DL 73/66, razão a mais para se inferir que o PL em foco, do estado de Santa Catarina, se desvela em flagrante violação também a esses dispositivos legais, que jamais poderiam ser contrariados por lei estadual.
O Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição, vem derrubando, sistematicamente, leis estaduais que dispõem sobre seguro e qualquer outra matéria da competência exclusiva da União, mesmo aquelas que disfarçam o propósito de estar legislando sobre produção e consumo. Cite-se como exemplo o julgamento proferido no Recurso Extraordinário nº. 313060, em que foi relatora a eminente Ministra ELLEN GRACIE, publicado no Diário Oficial da União de 24/02/2006, que, com raciocínio ático, conciso e lógico, tisna de inconstitucional uma lei de São Paulo que estabelecia sobre seguro em local destinado a estacionamento de veículos, justo por invadir, sem pudor, a competência para legislar sobre seguros, que é privativa da União, como dispõe o art. 22, VII, da CF, deixando claro no bojo do acórdão, que
“A competência constitucional dos Municípios e dos Estados para legislar sobre interesse local não tem o alcance de estabelecer normas que a própria Constituição, na repartição das competências, atribui à União ou aos Estados. O legislador constituinte, em matéria de legislação sobre seguros, sequer conferiu competência comum ou concorrente aos Estados ou aos Municípios”. É claro que o grifo não é do original.
Realmente, resta claro do caput do art. 22 da CF, ao conferir competência privativa à União para legislar sobre as matérias ali enumeradas, dentre elas as referentes a seguro, que a expressão “privativamente”, por si só, exclui a possibilidade da concorrência legiferante aludida no art. 24 da mesma Carta Constitucional, ou da supletividade, isto é, para os estados legislarem sobre produção e consumo em regime de concorrência com a União, não poderão fazê-lo jamais com sacrifício das matérias que a própria Constituição estabelece como de competência privativa da União. Do contrário, a competência privativa estaria sendo negada, por isso a interpretação de dispositivos, mesmo os da própria CF, se faz, induvidosamente, consoante o sistema da própria Constituição, que refuta a possibilidade de os estados legislarem sobre seguro, como inadvertidamente o fez o Poder Legislativo do estado de Santa Catarina ao aprovar a lei em referência.
A doutrina de PINTO FERREIRA, em escólios exarados de seu “Curso de Direito Constitucional”, 8ª edição, pág. 256, ao examinar o processo legiferante concorrente dos estados na CF de 1988, não deixa sombra de dúvidas:
“(...) As normas federais têm prevalência, de acordo com a regra: Bundesrecht bricht Landersrecht, isto é, o direito federal quebra o direito estadual, ou, ainda, o direito federal prima sobre o direito estadual.”
Nem se diga que no caso o estado estaria concorrentemente legislando sobre produção e consumo, só pelo pretexto de justificar as imposições constantes da lei em apreço sob a alegação de que assim procederia para proteger direitos do consumidor. Muito menos pelo fato de substituir, malandramente, a palavra “segurado” por “consumidor”.
Na verdade, a menção ao consumidor não esconde a desavisada ofensa aos citados dispositivos da CF e do DL 73/66, pois é indisfarçável a invasão da área de competência do poder federal, eis que, desassombradamente, o estado legislou mesmo sobre seguro. Tal se verifica, sem qualquer esforço, bastando atentar para os dispositivos da lei que adiante se transcreve a título de amostragem, a começar pelo limiar de seu primeiro artigo, que põe as seguradoras como destinatárias das proibições ingerentes de suas operações, que só a lei federal poderia estabelecer e comandar:
“Art. 1º - É vedado às empresas seguradoras, para o caso de veículos sinistrados, impor aos consumidores beneficiários os estabelecimentos reparadores prestadores de serviços de reparação, credenciados e/ou referenciados, como condição para o processamento da reparação do dano.”
E já começa como que “chovendo no molhado”, pois não é essa a prática adotada pelas sociedades seguradoras em qualquer estado de nossa República Federativa, na medida em que observam as normas baixadas pela Susep, consoante as quais se respeita o princípio da livre escolha, apenas ressalvando, como direito absoluto das seguradoras e como tal previsto nas normas federais, na condição de gestoras da mutualidade em que se constitui a operação de seguro, o de não se responsabilizarem pela qualidade dos serviços quando prestados por oficinas não referenciadas pelas seguradoras, mas apenas pelos segurados e com as quais a seguradora não estabeleceu o termo de referenciamento, sem que tal resulte em negativa de indenização.
É justamente através do termo de referenciamento/credenciamento que as seguradoras podem escolher as oficinas que adotam o padrão de qualidade dos serviços por elas exigidos e as condições de preço com elas ajustadas em benefício dos consumidores de seguro e, por conseguinte, da mutualidade, sob pena de, assim não o fazendo, serem as oficinas sumariamente descredenciadas. É através do referenciamento/credenciamento que as seguradoras podem garantir, por exemplo, a não-utilização de peças usadas ou recondicionadas, padrão que não poderiam jamais garantir perante as oficinas que não foram referenciadas ou credenciadas, quer dizer, aquelas escolhidas por conta e risco dos segurados.
Ora bem, se a lei consumerista impõe responsabilidade solidária da seguradora pelos serviços prestados por sua rede referenciada/credenciada de oficinas, decorre daí seu direito, mais que absoluto, de poder escolher o parceiro – no caso, a oficina referenciada ou credenciada – com o qual possa estabelecer as condições de preço e qualidade em benefício da coletividade de segurados que integra a carteira de seguro, não sendo curial, nem lógico, tampouco razoável, se pretender que a seguradora venha a responder – muito menos por lei estadual que igualmente não poderia estar legislando sobre direito civil (CF, art. 22, I) – pela qualidade dos serviços de oficina não referenciada ou não credenciada da livre escolha do segurado. Não é, portanto, razoável impor regras como que tais em lei, muito menos estadual.
A lei estadual em causa, bem a propósito, também viola a esfera de competência exclusiva da União para legislar sobre Direito Civil, estabelecida no artigo 22, inciso I, da CF, ao cercear a regra de indenização conferida à seguradora no artigo 776 do Código Civil, segundo o qual é facultado às partes no contrato de seguro convencionar a reposição da coisa, que no seguro de automóvel se dá por via de oficinas reparadoras referenciadas ou credenciadas.
O rol de condutas que a lei estadual em causa quer impor às sociedades seguradoras dá plena conta de pretensa ingerência estadual nas operações próprias do seguro e das seguradoras, já disciplinadas pelos normativos federais, tais como nos prazos de vistoria, remoção de veículos para oficinas, diferença de indenização que supere o limite do contrato, cobertura de carro reserva, franquia e outros como tais constantes das condições da apólice aprovadas pela Susep etc., chegando ao ponto de estabelecer, pasmem, a pena de cassação da seguradora, em flagrante violação à competência dos organismos federais. Enfim, interferindo, indevidamente, no processo de liquidação de sinistros a cargo das seguradoras e sujeitas tão somente às leis federais, como por igual impondo obrigação de as seguradoras fixarem placas (em estabelecimentos que sequer lhes pertencem) contendo todos os direitos do segurado referentes ao conserto do veículo dentre outros já postos, segundo as regras do Código de Defesa do Consumidor (CDC), nos manuais pertinentes, e mais, proibindo às seguradoras, tudo sob pena de multa, de remunerar os reguladores e investigadores de sinistro, trafegando na contramão de direção dos princípios da livre iniciativa, política de pleno emprego e demais princípios fundamentais esculpidos no capítulo da Ordem Econômica e Financeira da CF.
Ademais, na medida em que referida lei estadual propõe uma interferência descabida e, sobretudo, desigual, na atividade privada das seguradoras que operam com o seguro de automóvel em todo território nacional e segundo as mesmas regras nacionais uniformes – razão que já seria suficiente para tisnar a iniciativa de inconstitucional, posto magoar também princípios como os da livre iniciativa, dentre outros –, quebra também princípios como o da isonomia, diante de tratamento operacional desigual e específico para o estado de Santa Catarina.
O próprio relato das circunstâncias já mostradas apenas à guisa de exemplo, posto serem muitas as ingerências constantes da referida lei, já denuncia, por si só, a sua inconstitucionalidade diante dos princípios da hierarquia das leis, da competência privativa da União, da razoabilidade e proporcionalidade, da isonomia, dentre outros como o da livre iniciativa.
Enfim, a lei estadual em análise dá um show, inusitado, em termos de invasão indevida de competência da esfera federal para legislar sobre seguro, razão pela qual não merece nem deve prosperar, posto que acometida do mal incurável da mais absoluta inconstitucionalidade e ilegalidade, permissa maxima venia. Esse fato nos permite afirmar ser ela, como no dizer de FRANCISCO CAMPOS, um nada jurídico, cujos escólios que adiante se transcrevem e extraídos de fundamentação de acórdão do STF, poderiam ser invocados em cada juízo singular:
“(...) Uma lei inconstitucional não é lei, nem poderia ser, jamais, como tal considerada. Ela era o que é e continuará a ser, isto é, coisa nenhuma em direito, antes e depois da declaração de sua inconstitucionalidade. Tal declaração nada altera ou modifica o seu estado; não é em virtude de se declarar uma coisa inexistente que ela passa a existir... Um ato inconstitucional é um nada jurídico, uma nulidade com aparência, apenas, de realidade e existência” (Direito Constitucional, Livraria Freitas Bastos, vol. I, p. 440. CF, ADIN 85-3-DF, em DJU de 29-05-92, p. 78.333).
É o que me parece, sub censura dos doutos.

Ricardo Bechara Santos
Advogado especializado em Direito do Seguro. Sócio do Escritório Miguez de Mello Advogados, Presidente da Comissão Jurídica da FENASEG. Consultor Jurídico da Federação e Sindicato das Seguradoras.
rbechara@miguez.com.br

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